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quinta-feira, 10 de abril de 2014

GRANDE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Morte no avião 
                       Carlos Drummond de Andrade


Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua.
Vou morrer.

Não morrerei agora.
Um dia inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. Quantos passos na rua, que atravesso.
E quantas coisas no tempo, acumuladas.
Sem reparar,
sigo meu caminho.
Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.

Visito o banco.
Para que esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo do que foi meu peito e está aberto?
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estival.
Não obstante caminho para a morte.

Passo nos escritórios.
Nos espelhos, nas mãos que apertam, nos olhos míopes,
nas bocas que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula seu bafo e sua tática.

Almoço. Para quê?
Almoço um peixe em outro e creme.
É meu último peixe em meu último garfo.
A boca distingue, escolhe, julga,
absorve.
Passa música no doce, um arrepio de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem na engrenagem.
Tenho pressa. Vou morrer.

Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro de velho hospital em sombra.
Nem os cartazes.
Tenho pressa.
Compro um jornal.
É pressa,
embora vá morrer.

O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã.
Pois não haverá.

Declino a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca, o zumbido...
Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe meticulosa, entre doenças e desastres.

Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas.
Desfalece  o comércio de atacado,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas.
A cidade muda de mão, num golpe.

Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenado
que as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.

Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso decidir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.
Mas tomo o carro. Indico o lugar onde algo espera.

O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro no interior da morte.
A morte dispôs poltronas para o conforto da espera.
Aqui se encontramos que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.

Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete dos sopros robustos prestes a desfazer-se.

E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas colchão de nuvens, mortes se dissolvem,
apenas um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro da caixa iluminada e tépida
vivemos em conforto e solidão e calma e nada.

Vivo meu instante final e é como se vivesse há muitos anos antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefreável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta blocos cade vez maiores de ar.

Sou vinte na máquina que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Ó brancura, serenidade sob a violência da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo
golpe vibrado no ar, lâmina de vento no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
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=>Meu comentário => Essa Poesia soa como uma sublime Sinfonia aos meus ouvidos... Como o sentido
e a expressão das palavras podem ser tão musicais, descrevendo a trama complexa que envolve a
gama variada de timbres que estruturam uma Composição Orquestral - com sua mensagem tão
profunda sutil e abstrata... 

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