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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O HOMEM QUE LÊ

O Homem que Lê


Eu lia há muito. Desde que esta tarde 
com o seu ruído de chuva chegou às janelas. 
Abstraí-me do vento lá fora: 
o meu livro era difícil. 


Olhei as suas páginas como rostos 
que se ensombram pela profunda reflexão 
e em redor da minha leitura parava o tempo. — 


De repente sobre as páginas lançou-se uma luz 
e em vez da tímida confusão de palavras 
estava: tarde, tarde... em todas elas. 


Não olho ainda para fora, mas  rasgam-se já 
as longas linhas, e as palavras rolam 
dos seus fios, para onde elas querem. 


Então sei: sobre os jardins 
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus; 
o sol deve ter surgido de novo. — 


E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança: 
o que está disperso ordena-se em poucos grupos, 
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas 
e estranhamente longe, como se significasse algo mais, 
ouve-se o pouco que ainda acontece. 

E quando agora levantar os olhos deste livro, 
nada será estranho, tudo grande. 


Aí fora existe o que vivo dentro de mim 
e aqui e mais além nada tem fronteiras; 
apenas me entreteço mais ainda com ele 
quando o meu olhar se adapta às coisas 
e à grave simplicidade das multidões, — 
então a terra cresce acima de si mesma. 


E parece que abarca todo o céu: 
a primeira estrela é como a última casa. 

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" 
Tradução de Maria João Costa Pereira

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